quinta-feira, 16 de outubro de 2008

O parto de Sofia



Há muito, muito tempo atrás, em uma região longínqua e uma casa simples, morava Sofia, uma jovem senhora antitética, cheia de dúvidas e, digamos, feliz. Conhecida por suas perguntas desafiadoras, a sábia convivia de forma a perturbar a harmonia social de seu grupo. Os cidadãos de seu país temiam qualquer uma de suas indagações, que pareciam ferir-lhe e maltratar a estabilidade prometida por seus governantes. Acontece que, em um belo dia, resolveram calar Sofia. Suas perguntas ficaram mudas e ela não foi mais uma criatura feliz. Criatura? Talvez... Mas a jovem senhora não admitiria os ditames de ser criada por alguém. Era livre demais para isso. Com sua voz presa, foi se definhando aos poucos, engolindo toda a angústia de sua existência e esquecendo o que de fato era. Atentaram contra sua vida... e a mataram.

Quis iniciar esta crônica com a drástica narrativa de Sofia para lembrarmos um pouco da nossa condição de seres ditos racionais. Vivemos o tempo todo sob os olhares ameaçadores daqueles que deixamos governar nossa existência. O irmão chato, o vizinho sortudo, o padeiro nem sempre de bom humor, o chefe petulante, dentre tantos outros personagens da história que criamos e que ousamos chamar de Vida. É interessante notar que, após tantos olhares nos definindo, acabamos por esquecer aquilo que somos. E terminamos em um palco frajuto, com luzes falhas e platéia insatisfeita. Não temos a ousadia de Sofia, não conseguimos olhar para dentro de nós mesmos (ou, inclusive, para fora) e existir da maneira que somos.

O filósofo Descartes, na brilhante máxima de seu pensamento, atreve-se a dizer: “Penso, logo existo.” O ato de pensar passa a ser condição para existir. Por essa razão, vemos a massa que não consegue construir sua história porque não se admite sujeito dela, não a pensa, escusa-se da reflexão. São apenas participantes, fantoches de um circo desgovernado e sem sentido. A cada dia, percebemos que nossa vontade já não diz quem somos. Por quê? Porque não ousamos pensar. Aceitamos os fatos (e contra eles, não há remédio), comemoramos datas programadas e vivemos a grande apoteose do nada. Pensar exige coragem. Não se trata apenas de conhecer fórmulas e destrinchar conceitos nem sempre tão utilizáveis. Pensar exige que saiamos do nosso comodismo de ser gente. Sócrates, a grande referência para a Filosofia, aconselhou-nos uma das tarefas mais difíceis para os covardes: “Conhece-te a ti mesmo”. Temos medo... Fugimos desse conselho, porque, como aconteceu com Sócrates e Sofia, nosso futuro pode ser muito breve. Mas de que adianta ter uma existência sem fundamento? Assistimos, todo santo e profano dia, às mais horrendas atitudes humanas... Atitudes de homens que são como nós e que se deixaram seduzir pela vontade de não serem mais humanos. A existência às vezes cansa, sim. Mas não podemos tomar isso como desculpa para nossa preguiça e nosso medo de pensar. Filhos são jogados pelas janelas, pais são assassinados em troca de uma herança, crianças são executadas em rituais macabros em busca de poder, “despolíticos” debocham de nossa fome e de nossa cruel covardia... E tudo isso se dá como um grande espetáculo, onde a lágrima parece ser um prêmio para o cidadão. Na verdade, nem dá pra se falar em ser cidadão antes mesmo de ser gente, antes mesmo de existir... Ensinamos nossas crianças a cantarem “Uh, uh, como é bom ser lelé!” e achamos isso “bonitinho”, porque uma loirinha rica, maquiada e emplastificada se torna identidade para elas. A mãe perde seu espaço, pois tem medo de engravidar de Sofia.

Sofia vem do grego e corresponde a sabedoria. O método socrático nos ensina a maiêutica, que significa o parto das idéias no interior do homem. Na história do Brasil, por muito tempo, principalmente com a ditadura militar, fomos proibidos de pensar. O ensino de Filosofia era vetado nas escolas, porque, por mais subordinados que os homens parecessem, poderiam ficar grávidos. E isso ameaçaria, como ameaça, toda a estrutura de poder vigente. Continuamos em um Brasil que parece ser a morada de todos, mas que é país de alguns. Quando se engravida aqui, a sociedade estremece... Mas permanece muda. Para que ler Lispector quando se tem Harry Potter? Desculpem-me, mas isso me causa uma angústia insistente e teimosa. Nada contra o bruxinho de óculos grandes, até o considero simpático... Eu só não entendo as razões pelas quais nos deixamos abortar. Enterramos nossa existência e nos damos nomes incoerentemente fictícios... É preciso que um dos bonecos corte o fio e que Sofia seja nossa companheira para ser gente e brincar, ao invés de brincar de ser gente!
Alan Dantas
Crônica publicada em "A Tribuna do Vale" (10.05.2008)

Um comentário:

Sandro Plebeu disse...

Caracas, sabe aquele texto que vc sempre sonha em escrever?

o texto dos meus sonhos é esse Alan
uahaua
cara, muito bom... mecheu comigo fi

pois me eu uma ângustia tremenda

e me inspirou a retomar minhas leituras que já há uma semana estavam paradas recebendo poeiras

vc é o cara!!!