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Em minhas aulas de Redação, sempre oriento os meus alunos a não começarem texto algum pelo título. Até porque ele precisa conter a essência daquilo que é escrito. Em uma frase ou apenas um vocábulo, é preciso revelar, de forma bastante sedutora, o que o texto intenciona comunicar. Mas, para essas palavras com as quais agora brinco, resolvi ser incoerente... Comecei esta crônica pelo título, porque dentro da alma do artista, após ler alguns escritos dos filósofos contemporâneos Theodor Adorno e Walter Benjamin, a pergunta em xeque me perturbava com ares de desafio.
Um primeiro questionamento caberia muito bem para essa reflexão, como que em um estágio propedêutico para a construção dessa conversa: o que é arte? O que podemos conceber enquanto manifestação artística? Para muitos, o conceito de arte está totalmente ligado ao erudito, às mais inacessíveis produções humanas, consideradas, egoisticamente ou não, as mais belas. Para outros, em um distante extremo, arte é toda expressão do pensamento, livre da preocupação com padrões ou formas e sobre a qual nem mesmo a beleza precisa se fazer presente. Trabalhar com extremos é sempre um grande risco. Bom seria se o ser humano, em suas confusões de gente, conseguisse adotar o equilíbrio como meta existencial. Equilibrar-se é experimentar o mais natural que podemos ser. E isso me parece uma grande e inteligente saída para um mundo que assiste a radicalidades sempre tão absurdas... Mas voltemos ao nosso objeto de reflexão. Enquanto alguns podem se deixar embriagar pela prepotência de considerar como arte apenas o produto do erudito e incompreensível, o extremo dos ilimites também pode coincidir em funesta aporia. A anarquia do artista precisa valer muito mais para o outro do que para ele. E, mesmo anárquica, sua atitude deve ser responsável. Do contrário, teríamos, como temos hoje, estupendos “porra-loucas”, seja na arte, na literatura ou na política. Apenas fazem barulho, mas nada conseguem dizer. Não conseguiram convencer nem mesmo a si próprios. No entanto... sempre há quem os aplauda. É complicado falar de arte assim.
A arte nos humaniza, torna-nos homens, de fato. Enlouquece-nos, de uma maneira muito feliz e peculiar, na possibilidade de expressarmos aquilo que somos. Minha grande paixão pelo teatro tem nessa oportunidade uma fundamentação coerentemente aceitável. Lembro-me de que eu parecia um bichinho amedrontado na primeira vez em que estive no palco. Minha primeira fala era: “Cala a boca, Bárbara!” E minha única fala era essa... Mas, ali, sob as luzes da ribalta, como diria o poeta, meu coração sentia os nervos do nariz. E tudo me parecia um texto intragável. Eras muitas as formas de ordenar o silêncio à Bárbara, mas a técnica de um iniciante não permitia alcançar os objetivos do diretor. Na estréia, quando, brilhantemente, minha voz tremeu e meus olhos lacrimejaram, encontrei a entonação e o olhar corretos para aquele homem severo que gritava com sua esposa. E havia muito de mim naquilo... Percebi, então, que a arte não era cópia da cópia, como pretendiam os filósofos antigos. Mas era, antes, o hábitat natural do ser, onde ele se encontra e se reconhece.
Em uma das apresentações que fiz com o texto “Mulheres de Chico”, espetáculo que me rendeu uma paixão desesperante por Buarque, percebi que a arte tinha uma recepção diferente para cada grupo de pessoas. Em duas sessões muito próximas e em escolas diferentes, uma particular e uma pública, senti duas reações que muito me valeram. Na primeira, para um grupo de alunos da rede privada de ensino, todos de classe média alta na capital do Estado, sentimos um certo descaso no olhar. A arte estava lá, os alunos prestavam atenção em um silêncio que incomodava, mas nós não passávamos da experiência superficial de cada personagem. Não erramos uma fala sequer, tudo aconteceu em seu tempo, mas nem tudo nos transformou. Logo em seguida, fomos apresentar a mesma obra para um grupo de educandos da rede pública. O nosso preconceito nos dizia que aquilo ali não daria muito certo... Eles não entenderiam a profundidade de um texto de Chico Buarque de Hollanda. Como nos enganamos... Fisicamente, eles imitaram o silêncio da outra escola. Mas pudemos perceber uma coisa fantástica: não estávamos sozinhos no palco... O olhar daquelas crianças sedentas de saber nos fez sair do preconceito, lavar a cara com nossas lágrimas e deixar a arte acontecer naqueles artistas dos olhos amendoados e marcados por tantas cenas de um cotidiano de exclusão... O aplauso foi merecido naquele dia. Aquela peça era dirigida a um público conhecedor das canções de Chico. Quando vimos aquelas crianças se emocionarem com o Guri, cuja melodia não reconheciam, rompemos o intrépido e insano medo dos artistas: o medo de não serem compreendidos. Olhamo-nos, refletimos um pouco sobre a experiência e, satisfeitos, pudemos notar que a arte é para o ser.
Não há pré-requisitos para viver a aura de uma obra artística. Mas é preciso ser gente para compreender que a cópia não é somente o retrato. Há muito mais do homem naquilo a que denominamos arte. E pra isso, é preciso conhecê-lo, experimentá-lo, vivê-lo, sair da esfera da cópia. Com a voz ociosa, não teremos sequer autoridade para dizer a verdade de um bárbaro “cale a boca”!
3 comentários:
A arte nos humaniza, torna-nos homens, de fato. Enlouquece-nos, de uma maneira muito feliz e peculiar, na possibilidade de expressarmos aquilo que som
pode me chamar de emo... mas chorei quando li a parte das duas experiências - da rede priva da e pública
:'(
quanto aos porra-lokas da vida "artística" Renato Russo dizia:
"Falam demais... por não ter nada a dizer"
VLW ALAN
"...Ele sabe dos segredos
Que ninguém ensina
Onde guardo o meu prazer
Em que pântanos beber
As vazantes
As correntes
Nos colchões de ferro
Ele é o meu parceiro
Nas campanhas, nos currais
Nas entranhas, quantos ais, ai
Cala a boca
Olha a noite
Cala a boca
Olha o frio
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara..."
_Chico Buarque_
Meu amigo Global.rsrsrs
Como faço pra tirar aquele aviso qndo abri o blog? E por onde vc anda ?
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